Tudo o que não contam, você sente

Não foi assim que imaginei.
Não foi assim que disseram que seria.

Meu corpo já não é mais meu.
Nem meus pensamentos.
Essa vontade de chorar todo o tempo
não me pertence.

É do outro
que nasce
arrebentando a vida
que construí até agora.

“É transformador”, dizem.
É.
Mesmo sabendo que deveria existir
um único dicionário para a palavra
“trans-for-ma-dor”. Forma Dor.
Talvez eu preferisse não me transformar,
“Fica onde está, mulher”.
Mas nesse caso, para onde eu iria?
Claro que era mais quentinho estar ali, parada na vida.
Ainda mais nesses tempos onde tudo é incerto.
Ficar era o certo.
Mas fui, não tinha opção.
 
Quando alguém se arrisca na vida
sempre tem outro alguém que diz
“se nada der certo, você volta atrás
e começa de novo”.
 
Voltar atrás?
Praquela noite que a camisinha estava
mais distante que a garrafa de Gin?
Foi sem memória
mas foi com vontade,
isso me conforta.
Mas como devolver o bebê
pra garrafa de gin, me explica?

Sair do lugar dá medo.
Ver um ser que saiu de mim
ocupar o seu lugar no mundo
dá medo.
Pensar em tudo que vou precisar fazer
enquanto este ser for dependente
dá um desespero.

E imaginar cada desejo que não vou realizar
enquanto dependermos um do outro
dá uma tristeza.

Bom é que desde o nascimento
eu parei de imaginar.
Não dá nem tempo.

Eu não sou livre,
por enquanto.
Você não é livre,
por enquanto.
Mas dizem,
o choro é livre.
Choramos, às vezes até em uníssono.
Já o meu riso é preso
e só se solta
quando pego no colo essa pequena vida
que me olha nos olhos,
sorrindo, me amando,
mesmo com meu corpo desconstruído,
meus sonhos adiados,
meus pensamentos sequestrados,
meus afazeres acumulados.
Mesmo eu me questionando
como seria se eu não tivesse
você em meus braços.
Mesmo eu sentindo
que foi a melhor coisa
que me aconteceu.

Quando você saiu de mim,
eu também pude sair
do que eu achava que era “mim”
e me descobri por dentro.
Assim, seguimos nos conhecendo
nessa jornada que está só no começo.