Um rastro na areia é uma imagem precisa para falar de vestígios, aquilo do qual podemos deduzir uma ação, uma presença. A ideia de indício pode ser transferida à maneira como funciona a fotografia, já desde o início toda foto é indiciaria, a luz deixa seu rastro no material fotossensível e o que nos resta é uma representação de um instante, e seja qual seja a natureza de uma fotografia, esta funciona como um arauto, mas um arauto que não anuncia o que vem, ao contrário, que se encarrega de afirmar o que foi e não voltará a ser.
Félix González-Torres, morreu em 1996 por complicações relacionadas ao HIV, tinha 38 anos e já tinha se despedido, em 1991, de seu companheiro Ross Laycock, que também padeceu da mesma doença.
Nos anos anteriores, no final da década de 1980, o HIV devastava os Estados Unidos, tratava-se de um inimigo invisível que ao ser relacionado com a homossexualidade era tratado com um desdém que só podia proceder de uma terrível mescla de ignorância e preconceito. Artistas como González-Torres, Keith Haring, David Wojnarowicz e Peter Hujar, para mencionar alguns, viviam sob a ameaça da morte e deterioração do corpo. Ser um homem homossexual durante o pico da epidemia de HIV significava estar no olho do furacão.
“Untitled” (Double Fear) de 1987 é uma obra que se aproxima a essa ideia de medo, de ameaça. Trata-se de fotografias de uma multidão que, ao serem ampliadas e alteradas, recordam células, talvez células que sucumbem diante do vírus, pequenos grupos isolados pela disposição dos círculos. Isso ganha um sentido especialmente poderoso se se tem em mente que a final dos anos 80 uma das soluções à crise cogitada pelo governo estadunidense consistia em quarentenas massivas para portadores de HIV, o medo ao contagio era preponderante e fazia com que as relações sociais tendessem ao ostracismo, os afetados se tornavam membros prescindíveis e, ademais, indesejáveis dentro do escalão social.
Pode-se considerar que a eliminação de símbolos representa um tipo de extermínio histórico, podemos pensar na ação de grupos extremistas que destroem sistematicamente relíquias e sítios históricos, a arte funciona como índice de mudanças dentro das sociedades, então censurá-la ou destruí-la é algo bastante próximo ao emudecimento de vozes e sua eliminação do mapa histórico. Isso é algo que González-Torres entendia, pertencendo a uma minoria especialmente suscetível à censura. Em 1989 Robert Mapplethorpe havia enfrentado problemas pelo conteúdo sexual explícito de suas fotos, especialmente pela representação de casais homossexuais.
A perspectiva de González-Torres era muito diferente, ele insistia no poder de deixar rastros que fossem aparentemente invisíveis, propunha obras que desde a superfície não delatassem sua natureza, uma pilha de doces, uma corrente de luzes, uma cortina de contas brilhantes, o espectador não poderia rotular essas instalações como arte homossexual e isso permitiria que elas chegassem a mais espaços e que conseguissem invadir silenciosamente o panorama artístico sem disparar alarmes. Ao fazer que sua obra viajara e fora exposta, também estendia o rastro de sua própria realidade, a de um homem jovem que padece de HIV, um homem que dedica grande parte de seu trabalho à memória de Ross, seu companheiro, seu amante, e desta maneira conquistava espaço para ambos, reclamava novas vidas para Ross e possibilidades de moldar a ideia coletiva que rodeava a homossexualidade a final dos anos 80 e que, entre outras coisas reprováveis, caracterizava-a como perversa.
Consideremos a possibilidade de que alguém entre em contato com uma obra de González-Torres e sinta-se imediatamente comovido por sua acessibilidade, sua beleza aparente, sua maneira carinhosa de disposição diante do espectador, essa pessoa estabelecerá uma relação estética com a obra antes de vinculá-la a ideias particulares, permitindo que o entendimento seja mais democrático. Se se trata de alguém com ideias negativas com relação à homossexualidade, então a conquista será enorme, se apelará a sensações puras sem despertar esse ímpeto violento, ao final esses encontros podem produzir mudanças mais significativas do que aquelas que nascem do conflito.
González-Torres foi formado como fotógrafo e a presença de elementos fotográficos em sua obra parece inevitável, embora muitas de suas obras não passem por uma câmera ao serem produzidas, sim são dependentes de uma fotografia, quando se trata de instalações, o que fica é o registro delas no espaço, uma imagem que serve de testemunha de algo que o artista dispôs, uma obra que não pode ser reduzida a dimensões e que não pode ser reproduzida de maneira tradicional. Essa ideia de reprodução e repetição é uma constante dentro de sua obra, como exemplo poderia funcionar qualquer uma de suas pilhas de cartazes, pequenas torres de papel, em alguns casos fotografias que são oferecidas ao visitante como souvenir da exposição. Ao estilo de postais de viagens, recordações que afirmam o transito e o encontro, e mesmo que sejam imagens repetidas, cada uma se converte em uma lembrança particular nas mãos de quem a reivindica como sua.
Continuando com a ideia da repetição aparecem seus “bloodworks”, imagens repetidas de exames de sangue, mantras terríveis que anunciam a deterioração do corpo. O filósofo estadunidense Charles Sanders Peirce enumera varias chaves do trabalho indiciário e dentro delas considera os sintomas médicos como exemplos ideais de índice, aquilo que anuncia, aquilo que representa uma realidade e cujo vinculo com ela é de caráter empírico. Assim como os exames de sangue são amostras empíricas de uma realidade viva, as fotografias são testemunhas estáticas de realidades fugazes. Félix González-Torres utiliza ambos recursos sob as mesmas condições, embora a fotografia seja mais direta e explicativa, no caso dos “bloodworks”, a informação que contem é tão contundente que pode constituir uma das obras mais explícitas do seu repertório.
A fotografia tem um vínculo inexorável com a morte, tanto Roland Barthes em seu “Câmera Lucida” como Susan Sontag em seu “Sobre a Fotografia” se aproximam à mesma reflexão, toda fotografia é um memento mori, a tirania do tempo prevalece dentro da uma instantânea, a quietude de um instante congelado compete com o caráter efêmero da vida. O presente nasce e morre, tudo ocorre simultaneamente, e a fotografia como meio atado ao presente é também processadora de pequenas mortes, uma detrás da outra.
Entre as obras mais recordadas de González-Torres está a fotografia de uma cama vazia que mostra a marca de dois corpos, aparecem imprimidas duas cabeças sobre os travesseiros, o rastro aqui é uma ausência. Essa fotografia aparece em gigantescos outdoors publicitários, erigem-se no meio da cidade, sem uma descrição sobre o que deveriam representar.
Trata-se de um tributo a Ross Laycock, companheiro sentimental do artista, que morreu no ano da realização da obra, e é o retrato intimo da despedida de um ser amado. A fotografia habita o espaço público, entra na rotina dos habitantes da cidade, muitos a verão e não estarão conscientes dela, outros a verão como uma imagem flutuante entre tantas outras, talvez alguns a lerão detalhadamente, o importante é que será vista, que será parte da rotina de milhares de pessoas.
A imagem tem vários níveis indiciários, primeiro está a marca física na cama, depois o registro mecânico com a câmera, depois a reprodução no outdoor. Estabelece-se uma relação múltipla, González-Torres diz que suas obras não podem ser destruídas porque desde sua concepção ele mesmo se encarrega de fazer isso, então assim ninguém poderá violentá-las, ele faz com que passem por vários processos, costumam ser adaptações ou reproduções, como o outdoor ou seus “bloodworks”, tudo isso para poder reivindicá-las e protegê-las do deterioro, porque todas elas contêm um vínculo emocionam intenso com o artista, então proteger uma obra que fala das suas emoções corresponde a proteger a si mesmo.
Uma de suas instalações mais conhecidas e pungentes é um retrato de Ross, trata-se de uma pilha de balas que se amontoa na esquina da sala expositiva, tal pilha tem como peso designado o peso que tinha Ross quando estava são, seu peso ideal. Esta seria a primeira parte de uma obra que funciona de maneira narrativa, temos um Ross são a nossa frente, depois somos convidados a pegar balas da pilha, cada visitante recebe o mesmo convite e dessa maneira a presença de Ross começa a diminuir, é uma recordação clara do devastador que é o HIV.
A maneira como Félix intervém é deixando ordens expressas aos instaladores da obra para que, terminado o dia, a pilha seja reabastecida com o peso ideal de Ross, e mesmo que isso possa ser lido como uma maneira de regressar o companheiro à vida dentro do ciclo da exposição, também pode ser considerado como uma condenação à contínua desintegração. O que é preciso recordar é que a obra já estava destruída antes de estar diante de nossos olhos, ele já a havia descomposto ao pensá-la e dispô-la, ele renuncia o poder sobre ela. Isso ele explica em uma entrevista na qual propõe um exemplo simples, se estamos iniciando uma relação e sabemos que ela não vai funcionar, se antes que comece já a renunciamos, poderemos nos libertar da pressão do controle e do jogo de poderes, o que não quer dizer que estaremos livres da dor que a perda pode produzir.
Nancy Spector, atual diretora e curadora chefe do Brooklyn Museum (antes curadora chefe do Guggenheim de Nova York), dedicou grande parte de sua carreira à arte de Félix Gonzàlez-Torres, no livro dedicado a sua obra, publicado pelo selo editorial do Guggenheim, Spector faz um percurso detalhado e cuidadoso pela trajetória do artista, e em um momento de certa candura se refere a uma obra de Félix como “uma obra muito cruel”. Trata-se de uma pilha de folhas de papel branco com uma moldura impressa em preto, o que ela conta é que essas folhas em branco abrem um espaço para que projetemos ali imagens dignas de instantâneas que entesouraríamos, uma foto com uma pessoa que amamos, um momento inesquecível, de todas as possibilidades devemos escolher a que contenha tudo o que mais tememos perder, poderíamos tentar o ritual de Félix de destruir nossas recordações mais amadas antes de projetá-las como vestígios, podemos pensar em algo tão belo e feliz que estarreça e faça estremecer a alma, porque isso, o mais belo, o mais doce, é suscetível de ser um memento mori a mais, outra fotografia, vestígios, tudo isso que é e que nunca voltará a ser.