10 de novembro de 2020

Você o vê como o vê, é ciência e arte

Harold E. Edgerton

Se puséssemos ao redor de uma mesa cientistas e não cientistas, imaginamos que se criaria um abismo entre os dois grupos, que os primeiros diriam coisas fora do alcance dos demais. É a percepção da ciência como algo impermeável e enigmático, um emaranhado de conceitos reservados para alguns que dominam uma linguagem única e especialmente complicada, ao alcance de poucos. A maioria considera muito complexo dar uma atenção especial a essa parte tão essencial do conhecimento. Em Innumeracy, John Allen Paulos nos demonstra que, estando em um mundo governado pela matemática, a maioria presta muito pouca atenção ao que os números nos dizem. Trabalhos como esse nos mostram os benefícios de se integrar a ciência a tudo mais na vida cotidiana, além do que simplesmente usar um dispositivo, porque na realidade, essa distância não existe, ou no mínimo, é a mesma que separa o resto das disciplinas. O conhecimento é conhecimento e ponto. Estamos acostumados a encontrar textos que relacionam, por exemplo, psicologia e arte mas não física e arte ou física e psicologia. Algo está errado, parece claro e tem a ver com a forma como nós cientistas nos comunicamos, mais do que como, o quê comunicamos. Porém ainda que alguns de nós nos empenhemos em não fazer pedagogia e o resto em não dar atenção porque lhes parece chinês, essa separação é uma fantasia e uns sem os outros não fazem sentido.

Doce Hombres sin Piedad Fotograma
12 Angry Men, Sidney Lumet. 1957

Em geral, ciência e sociedade fazem parte de um mesmo, esse todo é chamado de natureza, e não existe fronteira. Elas se entrelaçam e formam um tecido único que, talvez, para simplificar, separamos para poder entender melhor o conhecimento e dizemos, por um lado, ciência e por outro, o restante das matérias. Mas, na realidade, está dentro das outras e as outras dentro da primeira e, ao mesmo tempo, dentro de algo maior.

Um exemplo muito próximo e “visual” de inter-relação é entre a física e a fotografia porque põe nas mãos dos restos dos mortais a física mais experimental. No final das contas, uma máquina fotográfica é um pequeno laboratório de ótica, com muitos de seus dispositivos e aparatos. E se falamos de fotografia como disciplina artística, há séculos, um princípio físico simples, porém fundamental, tem sido utilizado desde os primeiros usos da fotografia como arte. Dizem que, no século XVII, Johannes Vermeer usava a câmara escura (uma simples caixa ou sala com um buraco no canto, o princípio de como projetar algo oticamente) para criar imagens sobre o papel, que depois pintava.

Eadweard Muybridge race horse gallop,
Eadweard Muybridge race horse gallop, 1872

Porém, não é só o artista que se beneficia do cientista para criar. A relação funciona na outra direção e isso talvez seja menos evidente. Por exemplo, o processo que levou a fotografia para o cinematógrafo, da foto fixa à foto em movimento, se alimentou da ciência muito diretamente. Em 1872, o fotógrafo Eadweard Muybridge, pioneiro nos trabalhos fotográficos com movimento que serviram de base para o cinema, demonstrou que há um instante em que o cavalo galopando não está encostando no chão. Ele o fez começando por desenvolver um obturador mecânico, com o qual conseguiu um tempo de exposição de 1/500 segundos, inimaginável para a época (pura física experimental). Teríamos que perguntar a Muybridge se ele se considerava um cientista ou um artista. As diferentes criatividades se sobrepõem em algum ponto.

Harold Edgerton Milk Drop Coronet
Harold Edgerton Milk Drop Coronet, 1957

Neste sentido, os trabalhos fotográficos de Harold Edgerton, que nos mostram o movimento através de uma gota de leite caindo no chão ou balas atravessando maçãs (a fotografia representando o movimento através do estático!) tem resultados tremendamente inspiradores para nós cientistas e são imagens amplamente usadas na física para ilustrar a cinemática e a dinâmica, estando presentes em muitos livros e teses de doutorado.

Em qualquer caso estamos dizendo que a fotografia nos permitiu, em seu momento, “parar” o tempo de alguma maneira e comprovar fenômenos, o que de outra forma só as equações nos mostravam. Graças à inventividade de alguns e a curiosidade de outros, podemos mostrar graficamente o que ocorre em pequenos intervalos de tempo. A maioria das descobertas não são casuais, ainda que soe muito romântico dizer “achei um pedaço de polônio na gaveta”­, o certo é que quase tudo segue uma linha de pensamento em que se vão se plantando perguntas como as que se faziam os que contrataram Muybridge: uns tinham a intuição de que o cavalo deixava de tocar o chão durante um momento e outros diziam que não e disso surge uma pergunta intelectual que o fotógrafo/artista/experimentador poderia responder. A intuição, então, se apresenta como um fator que governa tanto a ciência como as artes, a criatividade em geral, a vontade de se obterem respostas para as perguntas que nos fazemos quase por acaso, mas com causalidade total. O que chamamos de intuição não creio que seja nada mais que percepção sem ordenar. O olho, por exemplo, é um dispositivo ótico fabuloso, com um sistema complexo de lentes, diafragmas, telas, etc… Como sistema ótico, é capaz de resolver situações tais como distinguir um fóton apenas (ainda que sem certeza). O olho detecta, manda a informação, mas o que acontece? O cérebro sabe que algo está acontecendo mas não sabe o que é. É um processador que não está conseguindo por em ordem o que o detector olho está dizendo. Há centenas de exemplos conhecidos de imagens subliminares em que o cinema e a publicidade fazem uso desta discordância entre detector e processador.

Portanto, é difícil imaginar o mundo de hoje sem a fotografia. Se olharmos para a arte dos últimos 150 anos não há dúvida. Ainda que esta seja cada vez mais conceitual e desprovida de forma para ensinar apenas o conceito ou a ideia, usa a imagem como elemento fundamental, como registro e suporte. E o cinema, como imagem em movimento, cujos princípios eu mencionei, e a curiosidade que o impulsionou, acredito que todos nós consideramos que a arte do século XX representa uma poderosa ferramenta com um grande poder de gerar opiniões e ideias, para moldar a sociedade.

A partir deste ponto de vista, o cinema aproxima a ciência da sociedade porque é o elemento que melhor difunde a cultura em geral. Tem despertado a curiosidade e trouxe as diferentes áreas do conhecimento para pessoas de outras áreas. Já nos sendo permitido a nós, cientistas, contar a realidade do que fazemos ou usando a ficção. O cinema vincula a sociedade com a ciência como nenhuma arte havia conseguido. Eu gostaria de destacar esse último: a ficção científica. Muitos acham que confunde, porque às vezes pode fazer parecer que o impossível é cientificamente possível. Eu acredito que pelo fato de se contextualizar socialmente a ciência com uma linguagem simples já é um grande passo. Depois decidiremos o que é real e o que é fantasia. Imaginar um cidadão alemão em 1927 boquiaberto na poltrona assistindo a Metrópolis de Fritz Lang é maravilhoso.

Por tudo isso, considero importante ressaltar que o estímulo e a iniciativa dos Muybridge e Edgerton, dos Lumière e dos Lang contribuíram enormemente para reforçar o método científico. Mesmo sem nos focarmos, nós, cientistas, vemos a aplicação diária daquilo que fazemos e isso tem sido uma grande motivação para que o desenvolvimento de centenas de disciplinas científicas e tecnológicas tenha sido exponencial.

A fotografia, as perguntas que nos fazemos e a assíncronia entre o olho e o cérebro como detector e processador são bons exemplos deste muito maior que dizia: vivemos em um universo eletromagnético, quântico, somos e estamos rodeados de partículas em constante movimento e vibração e temos de fábrica, os elementos que discernem o comportamento, e inventamos graças à curiosidade e à habilidade de uns e outros. A ciência contribui, sem dúvida, a todos os demais, porém o ímpeto artístico é crucial para que os cientistas continuem fazendo as perguntas. Perguntas que os artistas formulam a partir de outro lugar ou ponto de vista e que nós, cientistas, reformulamos para adaptá-las ao nosso campo.

Sobre o autor: PATXI LÓPEZ-BARBERÁ - Sou formado em Física pela Universidade Autônoma de Madri e me tornei PhD em Ciências Físicas pela University College Dublin. Passei 5 anos na Catalunha trabalhando entre a Universidade Autônoma de Barcelona e Institutos de Investigação sobre questões relacionadas a nanotecnologia. Ator amador em várias companhias de teatro, apaixonado por literatura e por escrita, atualmente formando-me em psicoterapias humanistas com expectativa de, pouco a pouco, mudar meu caminho de ciência para o humanismo ou, talvez, um humanismo científico ou uma ciência mais humanista.