6 de novembro de 2020

Cristina De Middel – Sem engenhosidade não há descobrimento

‘Ukraina Pasport‘, 2011, Federico Clavarino

O lugar de onde se vem – não apenas a família, uma determinada cultura ou religião e comunidade, mas também o território em si –, é tema de pesquisas de artistas nas mais diversas linguagens. Uma certa busca do “eu anterior a mim” ligada ao espaço. Na contramão de ir atrás do exótico ou desconhecido, são projetos que mergulham justamente no que o artista tem de mais próximo e pessoal, ou no que poderia ter sido próximo e, por alguma razão, está longe, acabou se perdendo, é desconhecido.

Na fotografia, assim como na literatura, o tema tem sido investigado de maneira interessante nas fronteiras entre biografia/documento e ficção. Enquanto no texto, muitas vezes, esse recurso autoficcional é mais lembrado pelos bastidores e pelas especulações (coincidências biográficas entre autor e narrador, ou entre autor e personagens; nível de detalhamento de algum episódio, normalmente embaraçoso; entrevistas dadas pelo autor etc), no campo da fotografia, muitas vezes, é o onírico que toma frente como resposta visual a este contato entre sujeito e história ou, ainda, entre sujeito e uma necessidade de compreender, registrar ou exorcizar situações no terreno dos afetos.

‘Ausländer’, 2012 – 2013, Priscilla Bühr
‘Ausländer’, 2012 – 2013, Priscilla Bühr

“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.” A frase de José Saramago introduz o trabalho “Ausländer”, da fotógrafa brasileira Priscilla Bühr, e toca o centro de muitos destes projetos: o sentimento de estar em um lugar, mas ver-se constituído por histórias, lembranças, resquícios e vícios familiares, traços físicos… de outro – aonde nunca se foi, ou de onde se vem mas se é estrangeiro ao mesmo tempo. 

O ensaio da artista, vencedor do Prêmio Brasil de Fotografia 2013 na categoria Revelação, é uma busca de aproximação entre neta e avô. Aqui, o onírico aparece já na premissa: este encontro é apenas imaginário, não real; se dá em uma viagem de vinte dias da fotógrafa à terra do avô, um alemão que veio para o Brasil fugindo da Guerra. 

Nessa busca de “eixo”, como denomina Priscilla, ao encontrar-se com um espaço que já não era o mesmo em que vivera o seu avô, são feitas imagens delicadas, que acabam construindo a memória da artista e a falta de uma presença. O projeto se complementa com fotografias tiradas no Brasil, na casa em que o avô também viveu, no Recife.

‘Ausländer’, 2012 – 2013, Priscilla Bühr
‘Ausländer’, 2012 – 2013, Priscilla Bühr

O espanhol Jon Cazenave, em seu projeto “Ama Lur”, foi atrás do que “tornava ele um basco”. Após alguns meses de pesquisas, testes e imagens (o projeto durou anos), acabou concentrando o trabalho nas centenas de montanhas e cavernas da região dos Pirineus. 

O resultado – fotografias de pinturas rupestres, gotas d’água (ou estrelas?), peles de pessoas e de bichos e algumas formas abstratas ou incompreensíveis – lembra frames do filme “A Caverna dos Sonhos Esquecidos”, de Werner Herzog. 

A série de imagens, em preto e branco, tem um quê de ritual e, além de exposta em diversos espaços, foi finalizada no formato livro. O artista diz que, mais do que sua identidade como basco, o percurso o ajudou a descobrir o que o torna humano.

‘Ama Lur’, 2015, Jon Cazenave
‘Ama Lur’, 2015, Jon Cazenave
‘Ama Lur’, 2015, Jon Cazenave
‘Ama Lur’, 2015, Jon Cazenave

Também foram publicados como livros os projetos “Italia o Italia” e “Ukraina Pasport”, de Federico Clavarino. 

O primeiro, se encaixa melhor no tema da autoficção, mas ambos são reflexões sobre território. “Italia o Italia”, como diz o texto preciso da editora Dalpine, “forma uma Itália mental”, a partir de símbolos inquietantes. 

São 136 páginas em um equilíbrio e unidade absoluto de composições, cores e tons, mostrando recantos supostamente vazios, mas carregados de detalhes que formam a ideia do espaço, dos seus moradores e de uma (outra possível) história. 

“Ukraina” (cronologicamente, anterior) foi impresso no formato de passaporte (tamanho, capa mole e outros detalhes gráficos), e investiga o país através de imagens fortes e mais diretas, um pouco menos simbólicas – quem sabe se pela menor proximidade do autor com o espaço. Ainda assim, realidade, nostalgia e um certo imaginário soviético se confundem em meio aos retratos, monumentos, árvores e bonecos de um tempo que é e que já foi.

‘Ukraina Pasport‘, 2011, Federico Clavarino
‘Ukraina Pasport‘, 2011, Federico Clavarino
‘Italia o Italia‘, 2014, Federico Clavarino
‘Italia o Italia‘, 2014, Federico Clavarino
‘Italia o Italia‘, 2014, Federico Clavarino
‘Italia o Italia‘, 2014, Federico Clavarino

De volta ao Brasil, o trabalho “Estranhos Íntimos”, de Thiéle Elissa, propõe uma viagem interessante sobre os rostos de desconhecidos encontrados em seu caminho. 

A partir de uma fala de Walter Benjamin (“que diz que antes do desenvolvimento dos transportes coletivos, as pessoas não conheciam a situação de se olhar reciprocamente por minutos ou horas a fio sem dirigir a palavra umas às outras”), a fotógrafa passou a registrar olhares de usuários do metrô, em super closes forçados que a aproximam destes desconhecidos com quem divide o espaço, ao mesmo tempo que os desloca para um não-lugar, fantasioso, cósmico.

‘Estranhos Intimos‘, 2016, Thiéle Elissa
‘Estranhos Intimos‘, 2016, Thiéle Elissa
‘Estranhos Intimos‘, 2016, Thiéle Elissa
‘Estranhos Intimos‘, 2016, Thiéle Elissa
‘Autoportrait‘, 1999, Danica Dakíc
‘Autoportrait‘, 1999, Danica Dakíc

Danica Dakíc, nascida na Bósnia, é conhecida por problematizar, de diversas maneiras, a questão do imigrante, do território e da identidade. Em uma de suas primeiras obras, “Autoportrait” (1999), a artista fez um vídeo em que o seu rosto tinha duas bocas: a boca da testa contava uma lenda infantil em alemão e a outra, abaixo, em bósnio. Em 2004, Dakíc realizou o projeto “La Grande Galerie”, em que expandiu a questão da identidade para o outro, indo atrás do povo rom (cigano) e sua jornada. Aqui, a relação com o espaço é totalmente diferente, talvez menos de retorno e mais de movimento. O resultado visual impacta: oito retratados parados em frente à uma impressão em grande escala do quadro “Imaginary View of the Grande Galerie in the Louvre as a Ruin” (impressão fotográfica sobre placa de alumínio). O quadro representa supostas ruínas do Museu do Louvre, e a artista o deixa atrás dessas pessoas conhecidas por seu nomadismo voluntário e pelas deportações forçadas e perseguições que sofrem. Sem nunca desaparecer.

‘La Grande Galerie‘, 2004, Danica Dakíc
‘La Grande Galerie‘, 2004, Danica Dakíc

Site dos fotógrafos:

Priscilla Bühr

Jon Cazenave

Federico Clavarino

Thiéle Elissa

Danica Dakíc

 
 

Agradeço a Gabriela Pyles, Ronaldo Entler e Tiago Coelho por terem indicado alguns destes trabalhos.

Sobre o autor: LAURA DEL REY - Graduada em Cinema, atua como escritora, fotógrafa e designer. Em 2015, publicou seu primeiro fotolivro, "Hart", em parceria com Alziro Barbosa; em 2017, publicou o zine "Sobre ser uma linha", em parceria com Gui Athayde. Além destes, outros trabalhos seus foram expostos no Brasil e no exterior. Atualmente, coordena a editora Incompleta, escreve para a revista OLD e cursa o segundo ano da pós graduação em Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz. É editora da revista trimestral Puñado, que publica contos de autoras latino-americanas, e ministra oficinas curtas de criação.