6 de novembro de 2020

A fotografia e a destruição da intimidade

A fotografia e a destruição da intimidade

Um recente estudo da ONU aponta que há mais pessoas no mundo com celulares do que com banheiros. Os números indicam que há 6 bilhões de pessoas com acesso a tecnologia de comunicação móvel e apenas 4.5 bilhões com acesso a banheiros funcionais. 

Outro estudo, conduzido pela Ericsson, aponta que até 2020 70% da população mundial terá um smartphone, tornando o acesso à internet e redes sociais algo ainda mais onipresente do que já é hoje. Estas transformações não afetam somente o suporte pelo qual nos comunicamos, mas essencialmente a maneira com que o fazemos. 

Com uma maior rede de dados e acesso rápido à internet, telefonemas serão cada vez menos relevantes e mensagens de texto e fotografias cada vez mais. O reino das selfies se torna cada vez mais consolidado.

‘Selfish’, published by Rizzoli, Kim Kardashian
‘Selfish’, published by Rizzoli, Kim Kardashian

Em seu texto Dança Sélfica, publicado na Revista Zum Nº 11, Joan Fontcuberta afirma que “a selfie introduz uma mudança substancial, pois transforma a atávica concepção da fotografia de um ‘isto aconteceu’ para um ‘eu estava ali’.” Esta noção de que sua presença confirma a veracidade e importância de um acontecimento é uma transformação central na maneira com que lidamos com a nossa imagem. Não basta mais produzir belas fotos de uma viagem, é preciso estar em todas elas, não basta mais presenciar um ato de terror ou de violência, é preciso estar inserido nele.  Esta relação dupla que cria um autor/personagem faz com que o registro de cada momento seja essencial, que nossas experiências não sejam vividas por nós mesmos, mas sim por toda nossa comunidade. Não há mais momentos de silêncio, de intimidade. Tudo é público.

 

Este novo processo de constante registro fotográfico já começa a se espalhar para o mundo das artes. Nos últimos anos foram lançados pelo menos três livros que lidam diretamente com o tema: Selfish, de Kim Kardashian, publicado pela editora Rizzoli (e que figura na lista de best-sellers do New York Times) e em um contexto mais indie os livros #SELFIE, de Christian Rodriguez, publicado pela Vibrant, e Vestígios Digitais, de Silvino Mendonça, todos lançados em 2015. Todos os volumes lidam com a nossa nova obsessão pela construção de uma autoimagem pública, o primeiro com a obsessão da própria autora, os outros dois com a obsessão pública sobre o tema.   

Vestígios Digitais – Silvino Mendonça
Vestígios Digitais – Silvino Mendonça

A predominância das selfies – o Google informa que foram 24 bilhões publicadas apenas em 2015 –  não é a única consequência da presença constante da fotografia em nossas vidas íntimas. 

Nossa vida sexual também foi transformada. Se seguirmos a mesma lógica proposta por Fontcuberta em Dança Sélfica, um ato sexual só terá valor se tiver sido registrado. 

Há centenas de casos de vídeos íntimos compartilhados por aplicativos de trocas de mensagens, processos e mortes causadas por esta prática. 

O celular não sai do nosso lado nem nos momentos que deveriam ser de prazer. Este fato transforma também a maneira com que se consome pornografia. 

Em um estudo lançado em Maio deste ano, o PornHub destaca que a categoria “amador” é a terceira mais acessada do site. Só podemos imaginar quantos dos vídeos desta categoria são disponibilizados sem o consentimento dos que aparecem neles.

#SELFIE – Christian Rodriguez
#SELFIE – Christian Rodriguez

Com esta nova realidade hiper-conectada em que nosso valor é construído essencialmente pela opinião alheia (nos importam mais o número de likes e seguidores do que nossa própria vivência) acabamos por criar nosso próprio big brother, um sistema de vigilância constante e voluntário, abastecido por nós mesmos. 

Agora, como artistas, mais do que sofrer pelas mudanças de paradigmas imagéticos, me parece mais interessante criar com este novo cenário em mente, instigar trocas e usar deste universo de imagens para entender melhor nossos tempos em que parece importar mais estar do que ver.

 

Sobre o autor: FELIPE ABREU - Sou fotógrafo, editor, produtor de conteúdo e já fui videomaker. Edito desde 2011 a Revista OLD, que publica trabalhos de jovens fotógrafos e entrevista grandes nomes da fotografia. Além disso, minha produção autoral já foi apresentada nos principais festivais de fotografia do Brasil e já foi publicada nos EUA e Europa. Acabo de lançar meu primeiro fotolivro com a editora Vibrant e estou muito feliz com isso! Para finalizar, comecei a escrever sobre questões relacionadas a didática e processos criativos.

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